Alberte Pagán

APONTAMENTOS SOBRE CINEMA GALEGO

APONTAMENTOS SOBRE

CINEMA GALEGO

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O sabor da pera

Alberte Pagán

[publicado: 02-03-17]

Achego-me a Pear Tree (John Woodman, 1980, 18’) atraído polas images da película e pola sinopse: jardim da vivenda do cineasta, pereira ao fundo, rodage ao longo do tempo (quatro anos), temporalidade condensada, câmbios nas estaçons (a caída da folha permite ver as vivendas trás as árvores), na luz e nas cores (planos duns poucos segundos rodados umha vez por semana a diferentes horas do dia)… Demasiadas coincidências. Poderia estar a falar da minha Eclipse (2010, 20’).

Pear Tree

Gravei Eclipse ao longo dum ano, filmando semanalmente um ou dous minutos, a diferentes horas do dia, que logo comprimiria na montage. O resultado som planos, como os de Woodman, duns poucos segundos de duraçom que recolhem os câmbios ao longo do dia e estacionais. Quando a folha cai vemos as vivendas que se agochavam trás as árvores: de aí o título da peça.

Mas Eclipse nacera como parte de Eclipse metanoico (2009), um encargo da Mostra de Curtas de Noia que se projectou no teatro Noela com Andrés Castro e Pablo Sax tocando em directo desde detrás da pantalha. A metade da metrage de Eclipse está em Eclipse metanoico. Filmara a pereira do meu jardim durante meio ano e após a estrea de Eclipse metanoico (na que aparecia um verdadeiro eclipse de sol) decidim continuar documentando a árvore até completar um ciclo anual.

As similitudes entre Pear Tree e Eclipse som abundantes: mesmo as duraçons dos planos e da peça inteira vam parelhas. Centremo-nos portanto nas diferenças.

O paisagista britânico respeita umha temporalidade “real” (a duraçom na rodage corresponde-se coa duraçom na projecçom), ainda que, obviamente, a temporalidade final (18 minutos) é umha condensaçom de quatro anos de rodage. No caso de Eclipse essa condensaçom dá-se ao interior de cada plano: o tempo de rodage foi mui superior ao de projecçom.

Woodman mantém a câmara fixa e nom intervém nesta filmaçom frontal e neutra. Eclipse, pola contra, ainda que está filmada mormente desde um ponto de vista fixo e co mesmo enquadre, permite achegamentos a detalhes da pereira e do jardim e, ao final, deixa que a câmara saia voando pola janela para, após percorrer o jardim e os seus habitantes, reentrar na vivenda e situar-se de novo ante a fiestra (bucle físico que imita o percurso anual da terra). Tamém permite a convivência de diferentes temporalidades, de jeito que umha pereira viçosa deixa assomar o seu esqueleto espido e invernal por meio dumha superposiçom. Mas o traço mais salientável de Eclipse quiçá seja essa sinfonia barroca de cores e luzes que recolhe a câmara: nom há manipulaçom digital: todos os efeitos som produzidos analogicamente polo mecanismo da câmara.

Eclipse

Pear Tree recolhe casuais intervençons humanas, gente que passa baixo a pereira, dum jeito documental. Eclipse inclui umha ficçom. Entanto o tempo passa, a vida flue e a natureza completa um ciclo inteiro de vida e morte, Eva e Adám reinterpretam e corrigem o mito da árvore da ciência: a fruta proibida fai-nos sábios. A voz de James Joyce lendo o capítulo oitavo de Finnegans Wake (“Anna Livia Prurabelle”) remite-nos à história cíclica de Giambattista Vico.

E esta é outra grande divergência com respeito à peça de Woodman: Pear Tree, conseqüente coa câmara nom intervencionista da película (posiçom fixa, respeito pola temporalidade interna de cada plano), é muda. Os interesses estéticos de Woodman estám jalundes: nas mutaçons da paisage através do tempo, dos dias, das estaçons.

Eclipse, pola contra, é barroca visual e sonoramente. A sua banda sonora, composta a partir do trevom que podemos visualizar ao final da película (a voz do trevom de Finnegans Wake), contradize a minha deriva anterior. Sempre rejeitei a música decorativa, a música como potenciadora da image, como redundante sublinhado; mas a experiência de ver Eclipse metanoico baixo umha partitura criada especialmente para ela, e tempo despois baixo as improvisaçons em directo de Urro, suscitou em mim um interesse pola contraposiçom dialéctica entre image e música que desembocaria na operística A Pedra do Lobo (2010), na que mesmo reutilizo algum plano de Eclipse, e que nom volveria repetir até o musical Konfrontationen 2014 (2015).

E entrementres a pereira de Pear Tree agroma e perde a folha repetidamente em silêncio. Polos seus frutos os conheceredes.
 
 

Pó de sombras: a Terra vista desde o espaço

Alberte Pagán

[publicado: 07-05-2018]

“Con una vocación abiertamente vanguardista, el cineasta y escritor gallego Alberte Pagán nos propone un trepidante viaje que arranca en el interior del cuerpo humano y nos lleva hasta el espacio exterior, pasando por las imágenes producidas por la sociedad de consumo y por la inmoralidad humana (violencia por y contra hombres y mujeres). Y todo esto antes de que se estrenara El árbol de la vida [The Tree of Life, 2011] de Malick.” Isto escrevia Manu Yáñez sobre Pó de estrelas (2007) em 2015.

Yáñez alude a umha seqüência que Terrence Malick introduz no minuto 20 de The Tree of Life e na que o cineasta condensa, em 16 minutos, a história do universo, desde a explossom inicial à apariçom do ser humano, passando pola extinçom dos dinossáurios. Numha cena essencial Malick mostra o nacimento da compaixom na mente e nos atos dum destes répteis mesozoicos, que lhe perdoa a vida a um animal ferido.

A Terra vista desde o espaço: The Tree of Life

A minha Pó de estrelas nace da genreira que a violência humana me produz, mas tamém está motivada por umha profunda compaixom, é dizer, por um padecimento compartido, por um sentir como próprio o sofrimento alheo. As secçons centrais, esse díptico no que publicidade e fotos de imprensa intercámbiam banda sonora, estám emarcadas por duas seqüências que permitem a comparaçom coa película de Malick. A primeira é um encadeado de images microscópicas que remata cum óvulo fecundado que se funde co planeta Terra. Nace o ser humano, que invade o planeta, e começa o primeiro capítulo, no que, através de images da publicidade, reconto o evoluir histórico na nossa espécie. A história da evoluçom de Malick dá passo igualmente ao nacimento do filho da protagonista (a ontogênese reproduz a filogênese), encetando o salto atrás narrativo que constitui o resto da película.

A última seqüência de Pó de estrelas mostra, dum jeito igualmente encadeado, fotografias macroscópicas do universo. Despois da terrível estância na Terra continuamos a viage desde o microscópico ao macroscópico e o nosso insignificante planeta desaparece num mar de galáxias. A busca da graça por parte de Malick reduze-se aqui a um mui materialista plano final no que o lixo espacial orbita arredor da terra.

A Terra vista desde o espaço: Land of Shadows

Porém Pó de estrelas tem, a nível formal, mais semelhanças com Land of Shadows (1987), do australiano Andrew Frost, que coa seqüência comentada de Malick. Frost foi um dos integrantes da Metaphysical TV, um movimento cinematográfico que utilizava a televisom como banco de images que apropriar e reutilizar. Ao filmar directamente do televisor, o grao do S8 potencia as linhas da image televisiva. “If you look into the void of Television long enough, it eventually winks back, the void looks into you, seeing deep desire, secret hurting, grand personal themes, doom, tragedy and ecstasy”, dizia Mark Titmarsh no manifesto Metaphysical TV, or how to make film with the hammer (1987). En Land of Shadows Frost nom cria umha montage alternativa das images dadas, senom que se centra numha única peça filtrada pola pantalha do televisor: Powers of Ten (1977), dos estadounidenses Ray e Charles Eames.

Powers of Ten é umha película didáctica na que a cámara, em picado cenital sobre um home deitado no Gold Star Families Park and Memorial de Chicago, afasta-se uniformemente até a terra perder-se no espaço e desaparecer entre nebulosas (e todo isto décadas antes de Google Earth). Imediatamente a cámara regressa a toda velocidade ao ponto de partida, e a partir desse momento enceta umha viage igual de alucinante ao interior da mao do home e das suas moléculas e átomos. Como em Pó de estrelas, a vertige do nosso espaço interior microscópico iguala a vertige do espaço exterior.

A Terra vista desde o espaço: Powers of Ten

Que fai Frost com Powers of Ten? Refilmá-la do televisor quase na sua totalidade, mas invertendo a orde das viages: primeiro refilma a microscopia do corpo humano, deixando a viage espacial para o final. Ao mesmo tempo elimina todo vestígio da voz educativa, substituindo-a polo recitado de fragmentos da primeira secçom da Plutonian Ode (1978) de Allen Ginsberg, um poema que denúncia a carreira armamentística e a “Némese radioactiva”. A ciência dos Eames converte-se em poesia e a definiçom da image original texturiza-se nas linhas do televisor e no grao do S8 final.

A Terra vista desde o espaço: Pó de estrelas

Land of Shadows é similar a Pó de estrelas (que tamém utiliza unicamente material preexistente) mais que nada pola sua estrutura. Em ambas umha primeira viage microscópica dá passo à viage macroscópica, emarcando a secçom central da película. Mas onde eu introduzo a “mensage” política, Frost crea umha seqüência abstracta (apenas 2 minutos dos 5’45’’ totais), igualmente filmada do televisor, onde poderíamos adivinhar o deslocamento do quadro filmado coa câmara deitada: é dizer, a mesma image abstracta “salta” horizontalmente, movendo-se continuamente cara à direita. Os sons de chuva ou água que acompanham sugirem images acuáticas, mas nom podemos estar certos de nada. A película começa igualmente cumha dúzia de segundos de images semiabstractas, filmadas do televisor desde mui perto, entre as que vemos letras que formam palavras que nom somos quem de decifrar.

Mentres Powers of Ten tem um título científico, perfectamente acorde coas intençons didácticas dos seus autores, tanto Land of Shadows como Pó de estrelas (como The Tree of Life) luzem cabeceiras conscientemente metafóricas. Nelas funde-se ciência com poesia e política com misticismo. E todas aspiram a apreender a imensidade do universo e da alma humana.
 
 

De rapas e bestas e outros rituais

Alberte Pagán

[publicado: 06-12-18]

Espanha insólita

España insólita (1964), a primeira longametrage do vasco Javier Aguirre, começa cumha série de estampas postais (bailes, costumes, monumentos e paisages, entre elas umha rotulada “ESPAÑA Rías Bajas”) ilustradas cum passo-dobre hispano. Desseguida a voz locutora expom as suas intençons: longe de ficar na superfície turística de España, o documentário pretende adentrar-se “na alma desta terra” que conserva “costumes tradicionais” e “ritos entranháveis”; “vamos espiar”, di, “as images secretas” que “conformam a conciéncia nacional”, apartando-se dos “caminhos trilhados que todo o mundo conhece” para mostrar umha “Espanha insólita”.

Essas som as intençons. O resultado, porém, nom deixa de ser umha nova colecçom de estampas, introduzidas por breves locuçons, entre as que topamos bailes, costumes, festas e ritos que já formam parte da tipicidade ibérica, desde umha sardana até umha corrida de touros, passando pola feira de Sevilha e a romaria do Rocio. A Espanha retratada conforma um paquete atractivo que o régime de Franco nom tem reparos em sancionar. España insólita nom é Las Hurdes (Luis Buñuel, 1932); pretende-se etnográfica, mas nom passa de costumista.

“A arcaica Galiza” está presente neste panorama ibérico em quatro seqüências. Na primeira (que é a segunda de toda a película) Aguirre filma um curro nas montanhas galegas (provavelmente na serra da Groba). Os cavalos som baixados do monte, encerrados e sujeitos com laços para, segundo o narrador (Paco Rabal), escolher aqueles susceptíveis de doma e ceibar o resto. Nom se menciona a marcage dos poldros nem o corte das crinas, ainda que si se incluem planos da fumigaçom parasiticida. O som de rinchos e trotes (nom sincrónicos) venhem acompanhados dumha música percutiva.

As outras referências galegas som: umha festa no adro dumha igreja, vivos e mortos em convivência, na que se oferecem ex-votos pola cura de animais; um grupo de gaiteiras (o grupo Saudade de Ribadeo) nas Rias Baixas, do que destacam as bandeiras espanholas que decoram o roncom; e a romaria dos cadaleitos de Santa Marta de Ribarteme.

Longe das árvores

O catalám Jacinto Esteva realizou Lejos de los árboles em 1970. Os resultados, como no caso da película de Aguirre, entram em contradiçom coas intençons iniciais. Nacida como reacçom à amabilidade de España insólita, Lejos de los árboles pretende aprofundar na España mais primitiva e atávica e, ainda que mais crua que España insólita (de feito algumhas cenas chegárom a ser suprimidas pola censura, como a das endemoninhadas do Corpinho ou os flagelantes de San Vicente de Sonsierra, na Rioja), nom consegue calhar como a obra crítica que pretende ser. Se España insólita era clássica e académica, Lejos de los árboles parte dumha concepçom mais moderna do cinema. Começa e remata com cenas urbanas, como marco dumha Espanha insólita vista desde a distância, com perspectiva (“longe das árvores para poder ver o bosque”). Os bailes burgueses na discoteca e na taberna em pouco se diferenciam dos ritos mais ancestrais retratados na película.

Mas onde falha Lejos de los árboles é no espírito crítico, que fica a meio folgo e que por momentos semelha umha impostura. Em seqüências como a das carreiras dos burros frouxos (ganha o primeiro em cair) a crítica vem dada polo próprio contido das images, pola crueldade intrínseca da tradiçom. Mas noutros momentos, como no desbarrancamento dum burro, a voz narradora informa-nos de que “a desapariçom do costume pode ser um bom exemplo a imitar”, para a continuaçom guindar o animal desde a muralha do castelo. Com este ato de crueldade gratuita (que lembra a cabra que Buñuel tira polo barranco em Las Hurdes, só para benefício da película) a credibilidade do cineasta começa a enfeblecer.

Som vários os episódios galegos incluídos em Lejos de los árboles: a romaria do Santo Cristo de Gende, a da virge do Corpinho, a coca de Redondela, umha caveira de pedra num cemitério… E, como nom, a Rapa das Bestas de Sabucedo, que vem precedida polo único apontamento socioeconômico, de espírito marxista, de toda a película. “A Galiza. Aldeas inteiras sem homes. Só crianças e anciaos”, di o narrador. Matriarcado labrego galego, conseqüência da emigraçom a América dos varons. Os homes voltarám velhos, de voltarem. No entretanto nenas, moças e velhas trabalham o campo e tiram do carro.

E a continuaçom assistimos ao encerro das bestas em Sabucedo, essencialmente masculino. A diferença dos outros rituais com animais registrados por Esteva, gratuitos e crueis, a rapa das bestas, além do espectáculo, tem umha funçom basicamente econômica. No curro marcam-se os poldros (para indicar a propriedade e a responsabilidade dos animais) e cortam-se as crinas (por higiene e, outrora, para a venda) ao tempo que se desparasitam internamente os cavalos.

Eugène Deslaw

O ucraniano Eugène Deslaw realizou na Espanha franquista de 1957 umha curiosa película chamada Visión fantástica. Exilado em França após a vitória bolchevique, Deslaw acabou formando parte da fornada de cineastas “puros” com duas interessantes películas, La Marche des machines (1928) e Les Nuits électriques (1928). A primeira cria umha montage de maquinárias, carris, êmbolos, rodas e pistons afim ao cinema futurista ou ao cubismo do Ballet mécanique (1924) de Léger. Numha seqüência Deslaw alterna, inverte, negativiza e duplica especularmente planos dumha grua. A segunda é umha peça abstracta de luzes e letreiros nocturnos de várias cidades (Paris, Berlim e Praga), com superposiçons, inversons, efeitos especulares e negativizaçons.

Muitos dos projectos persoais de Deslaw nunca se chegárom a realizar ou nom sobrevivérom até os nossos dias, como Negatif (1931), que antecede, como o seu título delata, tanto Images en négatif (1955) como Visión fantástica.

Si se conserva umha pequena “sinfonia urbana” impressionista chamada Montparnasse (1929), retrato do bairro, as suas gentes e as suas expressons artísticas por meio dumha cámara angulada, pronunciados picados, jogos de espelhos, sombras, geometrias e varridos. Cara ao final vemos brevemente a Luis Buñuel fumando numha terraça. Tamém chegou até os nossos dias um temperá “como se fijo” da película de Abel Gance La Fin du monde, chamado Autour de La Fin du monde (1931); e a cómica sonorizaçom, mais ilustrativa que détournée (Deslaw nom é Díaz-Noriega), dumha película da Gaumont de 1909 chamada Un monsieur qui a mangé du taureau (1935).

Visom fantástica

Visión fanstástica é umha película problemática. Está produzida polo NO-DO mais experimental, o mesmo que producirá Tiempo dos (Javier Aguirre, 1960). (Tiempo dos consiste numha série de planos da localidade vasca de Zarautz tomados em temporada baixa e acompanhados da banda sonora dos mesmos lugares em plena etapa turística.) Visualmente Visión fanstástica vai além do registro realista para negativizar e solarizar, em diferentes graus, a quase totalidade das images. Visión fantástica (re)utiliza material rodado polas equipas do NO-DO numha espécie de passeo pola geografia ibérica no que retrata ofícios e costumes, bailes e corridas. Desta volta nom temos curros galegos, mas a Galiza está presente nuns planos das “sotas da baralha” da fachada da igreja de Sam Fructuoso em Santiago e das ruas compostelás baixo a chuva como epítome da galeguidade. É a visom superficial e típica dum estrangeiro que, aparentemente, se identifica coa visom dos noticiários oficiais. Como em España insólita, aqui nom hai nada digno de censura e bem pode ser sancionada polo régime para a sua apresentaçom em festivais como os de Locarno ou Veneza. A música tradicional ou culta utilizada, tomada dos arquivos do NO-DO, ressuma hispanidade e apontoa a mensage tradicionalista. A constante negativizaçom e solarizaçom nom consegue superar a carga política das images oficiais nem “negar” a realidade mostrada, mais bem todo o contrário. Danças “regionais”, Manolete toureando, artistas históricos (Goya) e contemporâneos (Dalí)… O pintor de Cadaqués, adepto ao régime, aparece e desaparece nas escaleiras da sua casa, num jogo inócuo de vanguardismo de salom do que é um bom exemplo esta película de Deslaw.

Deslaw chamou o seu método “négavision”. As images negativas tenhem presença em todas as suas películas. Para Deslaw, “o mundo negativo é ao mundo positivo o que o sonho à acçom”. “Todas as árvores do mundo, todos os rios, todas as montanhas som, em negativo, obras de arte ainda virges. Basta com suspender a acçom da luz branca —essa polícia dos sonhos que o volve todo uniforme— para reencontrar a sua virgindade.” Deslaw reivindica a “luz negra, a luz negativa” e as sombras brancas como porta de acesso a umha realidade onírica. Desgraçadamente em Visión fantástica nom consegue ir além dumha mera cosmética. Botamos em falta o compromisso político de vanguardas como o construtivismo ou o surrealismo; nom abonda o falso apolitismo impressionista nem o vanguardismo de salom. A “négavision” de Visión fantástica, já desde o título (que, como o de España insólita, alude ao aspecto espectacular das images), nom é quem de negar nem de subverter nada; é um espectáculo sem mensage, como o dos fogos artificiais cos que remata Les Nuits électriques e que Deslaw retoma nesta Visión fantástica.

Rituais encontrados

No Festival de Cinema de Sevilha de 2018 Luis E. Parés organizou um ciclo chamado Rituais encontrados no que puxo a dialogar velhas películas experimentais espanholas de espírito documental com peças do S XXI que de algum jeito se inspiram em ou dialogam com elas. A temática comum dos filmes seleccionados é a imersom nas mitologias e cerimônias que “conformam a conciéncia nacional”, como o expressava Aguirre em España insólita, e que som um bom exemplo de etnografia experimental e de antropologia mágica.

Houvo presença galega em tres das cinco sessons do ciclo. La Umbría (Pepe Dámaso, 1975) estivo emparelhada com Montañas ardientes que vomitan fuego (2016), de Helena Girón e Samuel M. Delgado. Rapa das bestas (2017), de Jaione Camborda, retoma umha seqüência da já analisada Lejos de los árboles. Mas é a minha Walsed (2014), projectada antes de Visión fantástica, a única que nom só reconhece a déveda coa sua parelha, senom que está intrinsecamente ligada a ela. Walsed é um “estudo cinematográfico” que nace da ambigüidade política da película de Deslaw. Num intento de ir além da “négavision” comecei por positivar toda a película, para recuperar as tomas originais do NO-DO e comprovar se, polo caminho da manipulaçom formal, as mensages e os significados mudavam ou perviviam. Obviamente, as images solarizadas continuavam a agachar-se tras o positivado, por muito que se invertessem as tintas.

Nom foi até anos despois que descobrim que a versom de Visión fantástica que a RTVE oferece em aberto na sua página na Rede, na secçom “Documentários em preto e branco”, está igualmente positivada, incluídos os créditos. Foi um descobrimento assombroso, porque aí topei essa mesma intencionalidade de recuperar o carácter “documental” e figurativo das images, umhas images, lembremos, que foram produzidas polo NO-DO na sua faceta mais experimental e que, parece ser, décadas despois se recuperam unicamente polo seu valor referencial, como se os responsáveis da televisom pública se avergonhassem das florituras vanguardistas.

Em Walsed eu engadim flotituras às florituras. Nom só negativicei o negativo, senom que invertim a película tanto espacialmente (pondo as figuras cabeça abaixo) como temporalmente (colocando o princípio ao final e o final ao princípio). E os sessenta minutos originais ficárom comprimidos a tres minutos. A banda sonora segue a ser a mesma, igualmente comprimida e desglossada em dous canais: num, na direcçom original; no outro, invertido temporalmente.
Onde Deslaw negativizava, eu nego. Esta negaçom dumha negaçom dista de ser umha aceitaçom: negam-se as images e as cançons folclóricas do país fascista que subjaze às tomas do NO-DO retocadas por Deslaw, entende-se a intençom do cineasta à hora de negativizá-las/negá-las, mas, percebendo que o esforço nom avonda, vai-se além da sua proposta caminho da destruçom total. Walsed é umha película anti-antropológica, Walsed anula o etnografismo do original.

Se Frank (2015), terceira entrega dos meus estudos cinematográficos, serve como estudo analítico da peça de Iván Zulueta e, de rebote, da de James Whale, a brevidade de Walsed nom dá pé para a análise crítica; Walsed é, mais bem, umha síntese crítica de Visión fantástica. Da image fica só a “essência” (festas e danças, o apelido do cineasta ucraniano, invertido, convertido em valse); mas a reduçom temporal da música (castiça, típica) rompe a ancorage realista e por tanto a sua significaçom. As images perdem o marco propagandístico e, agora si, podem bailar por si mesmas.

Montanhas ardentes

La Umbría é um “poema dramático” baseado na peça teatral homônima (1922) do escritor grancanário Alonso Quesada. Realismo mágico, ruralismo, classes sociais e enfermidade confluem nesta história de fantasmas contada em 16mm. Na penúltima cena da película repete-se o encontro do neno Gabriel co cam César, entanto a irmá Salvadora desce as escaleiras; som as mesmas tomas que víramos ao início, mas agora a cor dá passo a um preto e branco granuloso que está mais em sintonia cos 16mm artesanais de Helena Girón e Samuel M. Delgado. Se La Umbría cruzava a fronteira entre a vida e a morte, Montañas ardientes que vomitan fuego adentra-se no subsolo dos túneis de lava da ilha de Lanzarote, onde se refugia o rebanho que víamos pastar nos primeiros planos. É um labor arqueológico, como se os cineastas pretendessem desenterrar o nosso passado, a nossa história, o que nos fai ser quem somos. Porém, a figura humana resulta fugidia: apenas um pastor (que di umha frase de advertência em silbo: “Coidado! Está-se a achegar!”), umha figura a contraluz que se adentra no mundo subterráneo, e duas fotografias que fam referência a esse passado, persoal e histórico.

Lámina de Mundus subterraneus reutilizada em Montañas ardientes que vomitan fuego.

A primeira image da película é um gravado do capítulo VI do Livro Quarto de Mundus Subterraneus (1664), do científico alemám Athanasius Kircher, precursor da lanterna mágica e criador do concepto de Geocosmos: a terra como organismo unitário no que todo está interconectado, o globo como Gaia. A lámina em qüestom representa um modelo do planeta terra e dos seus fogos internos, que circulam por tubos comunicantes e saem ao exterior atravês dos vulcáns (aos que o erudito chama “montanhas ardentes que vomitam lume”[6]). As duas fotografias mencionadas, escurecidas e sem contraste como se surgissem das gretas e desenhos de lava polos que passea a cámara, representam por umha banda umha mulher mungindo umha vaca numha cova e por outra um grupo de persoas caminhando por um terreno pedregoso. A primeira ilustra simbolicamente o subsolo como vivenda-refúgio; a segunda tem umha carga política maior. Tomada em La Aldea de San Nicolás (Gram Canária) o 14 de fevereiro de 1927, a fotografia mostra a expectaçom causada pola visita de Galo Ponte y Escartín, ministro de Graça e Justiça do governo de Primo de Rivera, que acudira à ilha para apaziguar os ánimos dumha populaçom rebelde que, por enésima vez, se levantara contra os terratenentes, ocupando-lhes as fincas, e a favor dumha reforma agrária. A visita do ministro puxo fim, parcialmente, ao “Pleito de La Aldea”, ao reconhecer o direito dos caseiros ou colonos à propriedade da terra que levavam séculos trabalhando. Estas duas fotografias mostram gentes e conflitos antergos, fantasmas do passado que, como em La Umbría, venhem ao encontro dos vivos, neste caso de nós que vemos as images no presente.

Ao encontro de Galo Ponte (foto: Teodoro Maisch). Girón-Delgado incorporam o quadrante inferior direito desta image a Montañas ardientes que vomitan fuego.

Hai umha terceira fotografia: rios de lava buscam e formam caminhos pola aba do vulcám, de noite. A memória geológica da terra une-se à memória histórica, do mesmo jeito que, como me indica Helena Girón, os tubos vulcânicos serviram de refúgio a pastores, aboriges e maquis ante as ameaças exteriores: geografia da resistência. A película remata cumha cita do livro Aos nossos amigos do Comité Invisível, no que se contemplam as insurreiçons nom como feitos progressivos e lineais senom como acontecementos interconectados que surgem de jeito simultáneo, por ressonância, unidos entre si por tubos comunicantes como o geocosmos de Kircher. Em palavras de Girón, “unidos subterraneamente por umha cadea de afectos, ideas e cumplicidades que topamos na experiência colectiva vivida durante esses momentos de resistência”. Os fogos insurrecionais estouram às vezes contagiados por faíscas e lapas de terras distantes, às que se chegam por condutos subterráneos. “Qualquer insurreiçom, por mais localizada que seja, emite sinais para lá de si própria, contendo de imediato qualquer cousa de mundial”, afirma o texto do Comité Invisível.

A textura da rocha na que se inserem as fotografias é um reflexo da textura do filme, ou vice-versa. O som óptico da decadência física do celuloide, o ruído produzido polas manchas na banda sonora, parece querer indicar os queixumes da terra durante o parto de vulcáns e montanhas.

No cinema de Girón e Delgado a materialidade do celuloide é um protagonista mais, se nom o mais importante. Trabalham artesanalmente com película caducada para conseguir umha textura frágil, plástica, que semelha atemporal, como se fosse a realidade a que estivesse caducada, como se a memória histórica houvesse que buscá-la na materialidade da película, como se a miséria social tivesse correspondência co deterioro do celuloide. A estética nom é dispar das tamém artesanais películas do canadiano Phil Hoffman; em ambos casos a fragilidade do material fala-nos da febleza da memória, seja esta persoal e familiar, no caso de Hoffman, ou histórica e mítica, no de Girón-Delgado.

Já desde Sin Dios ni Santa María (2015) Girón e Delgado praticam um materialismo mítico e mágico. A história de bruxas e viages astrais sugerida por esta película tem a sua correspondência na fantasmagoria do revelado artesanal. Se em Montañas… recuperavam umhas velhas fotografias, Delgado e Girón retomam aqui umhas gravaçons etnográficas de Luis Diego Cuscoy no Tenerife dos anos sessenta como base argumental. Nelas uns homes testificam dos seus encontros com meigas e das suas viages por meio de meigalhos. As images, rodadas em Ye, Lanzarote, mostram a vida cotiá dumha velha mulher, e o encontro e risos dum grupo de mulheres. O documento sonoro volve-se mitologia, a magia agacha-se baixo a aparência de cotidianidade. Som homes que falam de mulheres, e portanto do desconhecido, que nos seus relatos convertem em bruxaria. As mulheres na pantalha nom falam: olham-nos e deixam-se fazer, seguem ao seu mantendo o mistério e a ambigüidade, quiçá como mecanismo de defensa.

Em Plus Ultra (2017) os cineastas utilizam atores e atrizes num relato sintético da conquista de América. A película começa com planos dumha múmia canária filmada em 16mm caducado. A textura rugosa é compartida por continente e contido. O resto da narraçom, filmada em súper 16mm, é mais diáfana e académica. Dous homes arrastram umha vela pola selva. Mentres dormem som observados por um grupo de mulheres, que sentam a comer figos chumbos dum intenso vermelho sangue. Um dos homes sonha: “Como sairemos de aqui?” Temos que entender esse “aqui” tanto geográfica como mitologicamente: “Como sairemos deste sonho, deste mundo mágico nos que nos vemos atrapados?”

Rapas das bestas

Jaione Camborda filmou a sua Rapa das bestas em súper 8 mm e num preto e branco granuloso e atemporal. Os seus planos, pontos de vista e mesmo soluçons de montage poderiam ser doadamente intercambiáveis cos da seqüência de Sabucedo de Lejos de los árboles (nom assi co curro filmado a cor por Aguirre em España insólita). Mas onde Esteva, na linha modernista do seu filme, adiciona umha peça de jazz livre, alhea à realidade rural e montanhesa de Sabucedo, como ilustraçom sonora do rito ancestral, Camborda usa o som de cascos e rinchos, ainda que nom sincrônicos, como partitura. Som ruídos trabalhados como música concreta, ainda que sem chegar à contradiçom sonora de Esteva. É como se a cineasta renunciasse a qualquer visom actualizada do curro de cavalos e reivindicasse o costumismo espectacular e cosmético que víamos em España insólita e em Visión fantástica.

Tamém resulta problemática a ausência das aloitadoras de Sabucedo (Rapa das bestas foi filmada nesta parróquia e mais nos curros de Amil e de Valga). Perguntada sobre o tema durante a apresentaçom da peça no festival de Sevilha, Camborda argumentou que decidira nom incluí-las por serem algo anecdótico e nom significativo. Entendo o seu ponto de vista: a rapa é um acontecimento masculino, viril, no que a presença dumha mulher nom é relevante. Porém Esteva retratava, em Lejos de los árboles, essas mulheres sem homes que levavam a cabo as duras tarefas do campo. Nom estará Camborda contribuindo à invisibilizaçom da mulher? Umha mulher que é quem de medir-se co home em igualdade de condiçons nesse mundo de testosterona e adrenalina. E umha mulher que talvez nom estava aí no século passado quando Aguirre e Esteva passárom por estas terras. A cineasta, já desde o formato escolhido, semelha querer renunciar ao único signo de “modernidade” do curro de Sabucedo.

Rapa das bestas de Jaione Camborda.

Lembremos por um intre umha cena de España insólita na que umha banda de gaiteiras toca umha peça nas paisages das Rias Baixas. Trata-se de Saudade, um pioneiro grupo de Ribadeo formado exclusivamente por mulheres. Anecdótico? Nom significativo? Mas nom é a nossa obriga destacar o, neste caso, insólito para ajudá-lo a converter-se em habitual? E nom reduzir a presença feminina a um grupo de baile no curro baleiro (anacrónicas animadoras desportivas), como fai Camborda em Rapa das Bestas.

Voltemos por outro instante a seqüência mais marxista de Lejos de los árboles, na que se retratam essas “aldeas sem homes” nas que som as mulheres as que fam todas as tarefas do campo, leviás ou pesadas. Aldea sem homes era Sabucedo durante a guerra franquista e, segundo contam as crónicas, foi daquela quando as mulheres tivérom que ocupar o espaço vazio deixado polo aloitadores. A necessidade nom conhece de sexismos. Hoje som várias as aloitadoras que produziu Sabucedo; e outras mulheres, às vezes adolescentes, tomam o relevo noutros curros, como no de Vimianço. Mostremos estas mulheres para que o anecdótico deixe de sê-lo.

Semelha que Camborda quere compartir este costumismo do S. XXI co Lois Patiño de Costa da Morte (2013), na que se inclui um plano geral, fixo, estetizado, dum curro. Nos antípodas desta visom folclorizante estaria a película de David Castro Mougás (2010), na que consegue a proeza de filmar o curro epónimo sem mostrar os cavalos directamente. Isso nom quer dizer que nom os sintamos, pois todo indica a sua presença: um varrido, umha sombra, umha erva pisada, um rincho. Tanto estética como eticamente, tanto política como cinematograficamente, Mougás é um modelo a seguir à hora de retratarmo-nos, porque Mougás fala desde nós para nós, fugindo conscientemente da estampa para turistas.

O cavalo é umha metáfora[7]: Sicixia

Xurxo González pom-me sobre a pista de Más allá del río Miño (Ramón Torrado, 1969), um passeo pola Galiza mais tipificada e turística que começa com images do curro de Torronha, na Serra da Groba, provavelmente o mesmo que filmou Aguirre para España insólita. Images documentais do curro, na seqüência dos créditos, integram-se na trama: Fuco e Andrés rivalizam polos amores da mestra Ana e o curro é o lugar idóneo para provar a sua virilidade.

Mas a película de Torrado nom é a única em utilizar a vistosidade dos curros como recurso metafórico. Ignacio Vilar coloca igualmente a rapa das bestas de Sabucedo antes dos créditos da sua Sicixia (2016), umha película que mistura documentário e ficçom a partes iguais. O protagonista é Xiao, um sonidista ao que lhe encarregam um trabalho na Costa da Morte. Com esse galho, Vilar adentra-se no território e nas suas gentes para fazer um retrato da bisbarra. As conversas devolvem-lhe à paisanage a voz original que perdera nas deturpadas intervençons da citada Costa da Morte, película em princípio cumha maior vocaçom documental. Se algo lhe hai que reconhecer a Ignacio Vilar é o seu respeito pola língua e o seu interesse por registrar as falas dialectais. Em Sicixia falam marinheiros sobre a presença feminina nos barcos e sobre o reparto de poder entre a mulher e o home umha vez em terra: eles traem os quartos, elas administram; fala um ornitólogo sobre a poligamia ou poliandria dumhas poucas espécies de aves; falam marisqueiras e palilheiras sobre o machismo que coarta o interesse dos nenos num ofício tradicionalmente feminino. Tamém se fala das mulheres soas, esposas de marinheiros, habitantes dum novo tipo de “aldeas sem homes”. Em Sicixia o patriarcado, como pano de fundo, é omnipresente, implícita e explicitamente.

Mas Sicixia começa longe da costa, nas montanhas de Sabucedo, onde Xiao grava a chegada dos cavalos e a rapa no curro durante cinco minutos. Despois, na cantina, escoita aos aloitadores comentar a angueira. Patiño, seguindo a estética da sua película, filmara o curro de Costa da Morte desde a distáncia, em plano fixo, convertendo a festa num cartom postal. Vilar, polo contrário, nom só mete a cámara entre bestas e cavalos (como fazia Esteva e como farám Camborda e Xacio Baño), senom que introduze ao protagonista na cena, numha consciente simbiose de ficçom e documental: os elementos documentais integram-se na ficçom, a ficçom insere-se no mundo real.

A ficçom dentro da realidade. Xiao em Sabucedo (Sicixia).

Tamém Patiño filmava o seu curro fora do ámbito geográfico da Costa da Morte (concretamente em Cotobade, Pontevedra), ante a impossibilidade, por qüestom de datas, de filmá-lo em, por exemplo, Vimianço. Mas onde Vilar o justifica argumentalmente Patiño cala. Em Costa da Morte a estética prima sobre o documento, a estampa impom-se à realidade; umha realidade que está mais presente na ficçom de Vilar que no documentário de Patiño.

Toda a seqüência pré-créditos de Sicixia funciona como símil do que vai vir. A nível formal repetirá-se esta alternáncia entre ficçom e entrevistas disfarçadas de diálogos; diegeticamente a loita entre homes e animais, entre razom e instinto, entre convençons sociais e o amor, nom deixa de ser umha metáfora da relaçom amorosa entre Xiao, em plena crise matrimonial, e Olalla, mulher casada. Nom se pode “domar o indomável”, em palavras de Vilar, é dizer, nom se pode domesticar o amor, nom se pode loitar contra os instintos. As bestas do curro som submetidas polos homes, mas só temporalmente; ao rematarem a tarefa, ham de ceibá-las no monte umha vez mais. As cenas do curro permitem umha leitura passional e romântica mas tamém umha antipatriarcal.

Ao igual que na película de Camborda, a mulher, em tanto que aloitadora, está ausente. Quiçá, dada a temática antipatriarcal da película, esta ausência surprenda mais no caso de Sicixia. Porque de feito Sicixia está enmarcada por senlhas cenas submarinas nas que Olalla se mergulha no oceano para colheitar leitugas de mar. Os planos alongam-se além do denotativo para se converterem em poesia visual. Mas o importante destas images é a sua incidência narrativa no papel da mulher na nossa sociedade, e nom é gratuito que a protagonista, em contra da opiniom social, se dedique a um ofício, o de mergulhadora, tradicionalmente reservado aos homes.

O cavalo é umha metáfora: Trote

Em Trote (2018) Xacio Baño utiliza a rapa das bestas de igual jeito metafórico, mas em vez de situá-la ao começo da película, como faziam Torrado e Vilar, reserva para ela a totalidade do quarto e derradeiro capítulo. Nesta sua primeira longametrage Baño abandona o formalismo (por momentos tam próximo do estruturalismo) das suas curtas anteriores para propor um drama rural cuja significaçom se centra nesse curro de Amil filmado ao longo de 15 minutos como momento culminante tanto da acçom como da semántica do filme. O que si mantém Baño da sua obra anterior é esse olho excepcional que el tem para capturar a vida, os usos e a arquitectura rurais, sobre todo esses interiores domésticos tam característicos. A rapa e a marcage das bestas é o elemento central de Trote. Todo o relato está enmarcado por este acontecimento, desde o primeiro encontro dos gandeiros no curro baleiro, ao começo da película, até o encerro final.

Trote coincide com Sicixia na impugnaçom do patriarcado. Mas onde Sicixia resultava optimista, nom tanto no trágico desenvolvimento da narraçom como na semántica da metáfora cavalar (nom se pode “domar o indomável”), a película de Baño constata a persistência da opresom patriarcal. O feito de que situe a rapa ao final da película, quase sem interferências narrativas, nom permite outra interpretaçom. No plano final de Trote um home sujeita com força, contra o chao, a testa dum cavalo. Sabemos que a besta (besta como égua, é dizer, fémea) se erguerá e voltará a trotar ceibe na montanha; mas Baño pecha a película com essa image de submetimento, fixando a metáfora, sem possibilidade de escape. Trote constata a existência desses barrotes contra os que a protagonista, Carme, tropeça umha e outra vez, chamem-se irmao, pai, amante ou sociedade. Ou igreja católica, tam presente na sociedade galega. No primeiro capítulo o irmao e a cunhada de Carme chegam à casa familiar para assistir ao enterro da nai, morta em accidente de tráfico. Na porta da casa topam e recolhem umha capela ambulante da “sagrada família” —a família como gérmolo da opressom social. No capítulo final Carme, caminho do curro, deposita a mesma capela numha porta vizinha. É umha religiosidade mais indolente e conformista que vocacional; mas aí está, conformando de casa em casa umha sociedade na que a mulher interpreta um papel secundário e submisso.

Fémeas submetidas: última image de Trote.

No derradeiro capítulo o pai-patriarca prepara-se para o curro, no que fará um lume de caroços onde aquecer os ferretes que marcarám os pelejos das bestas. Som os mesmos ferros rubro-claro cos que se marcavam os escravos, as escravas. Som a assinatura do poder patriarcal que deixa constáncia da sua propriedade. E a família nom deixa de ser da sua propriedade. Mentres os homes aloitam cos cavalos, e mesmo os nenos se iníciam na virilidade cos poldrinhos, o papel da mulher (Carme neste caso) reduze-se ao de camareira (lea-se serventa) na cantina do curro. Carme semelha destinada a ser dominada, domada e marcada. Neste caso, narrativamente falando, si se entende a ausência de aloitadoras, de tê-las havido durante a rodage.

Se em Sicixia a posiçom sintagmática do curro (metáfora inicial a partir da que surge o relato) permite um desenvolvimento da acçom, umha reinterpretaçom, mesmo umha rectificaçom, a posiçom final do curro na película de Baño, e em especial esse postreiro plano da besta dominada, a cabeça contra o chao, nom permite divagaçons semánticas. A sorte está botada.

Notas:

[6]
Umha breve selecçom de Mundus Subterraneus foi traduzida ao inglês em 1669 baixo o título The Vulcanoes or Burning and Fire-vomiting Mountains.

[7]
A Horse is not a Metaphor (2009) é umha película de Barbara Hammer na que a cineasta estadounidense se autorretrata na batalha, vitoriosa, contra um cancro de ovário. O trote do cavalo funciona como símbolo de liberdade (e portanto, apesar do título, como metáfora) após o seu confinamento à cama do hospital. Esta aparente contradiçom entende-se melhor no contexto do cinema estrutural-materialista, sempre receoso duns símbolos e umhas metáforas que esvaem e agacham a materialidade das películas. Hammer, co seu título, problematiza a nossa inércia, como público, de metaforizar e narrativizar toda proposta cinematográfica.

 
 

Diana Toucedo em tres tempos

Alberte Pagán

[publicado em Café Barbantia o 2-03-19]

1. Ser de luz (2009, 5’). Diana Toucedo pede-me que apadrinhe umha projecçom de Trinta Lumes na sala Numax. Aproveito para revisar a primeira película que vim dela, Ser de luz, umha peça construída com material alheo na que a luz, as superposiçons e as transparências som protagonistas. As fontes originais das images som as abstracçons pintadas dos Preludes 1-6 (Stan Brakhage, 1996); material etnográfico tirado de Film ist. (Gustav Deutsch, 2002), à sua vez construída a partir de metrage encontrada; e a cena do sonho de El negro que tenía el alma blanca (Benito Perojo, 1927), que Deutsch recolhe no capítulo “Magia” da sua película. Ser de luz é cinema sobre o cinema, sobre a construçom da image (e do som) e o seu materialismo, sobre a magia e mistério da representaçom mecánica do movimento. Toucedo refilma algumhas das images desde um televisor granuloso, como se quigesse tender pontes entre a figuraçom dessas images figurativas das primeiras décadas do cinema coas abstracçons de Brakhage. Pero Ser de luz vai além do exercício plástico para denunciar, através dumha meditada escolha de images, a opressom da mulher e o racismo etnográfico. É assi que, do capítulo “Conquista” de Film ist., retoma os retratos quase policiais dumhas mulheres africanas que posam ante a cámara para serem fichadas e catalogadas (o cinematógrafo, aliado da etnografia, como arma imperialista).

Diana Toucedo

2. En todas as mans (2015, 115’). A seguinte película que conhecim de Toucedo foi En todas as mans, um documentário mais académico no que prima o contido (análise e reivindicaçom da propriedade coletiva dos montes comunais) sobre a elaboraçom formal: o cinema como ferramenta social e política, a autoetnografia como única antropologia válida. As associaçons das comunidades de montes, as únicas existentes em tantas paróquias, vertebram a organizaçom social do território rural galego, criando dinâmicas coletivas. Todo vizinho ou vizinha dumha paróquia, a diferença dos proprietários de casas de verao, tem direito a essa propriedade comunal polo simples feito de ali viver. Segundo os estatutos, para adquirir esse direito as casas ham de estar “abertas e com fume” polo menos durante 10 meses ao ano. Som esses fumes, ou a sua escasseza, os que nos levam a Trinta lumes.

Trinta lumes

3. Trinta lumes (2018, 81’). Trinta lumes combina a magia de Ser de luz coa realidade de En todas as mans: realismo mágico. Seguindo umha frutífera veta ruralista presente no cinema galego (Arraianos, Paris #1, A raia, Verengo), Toucedo registra labouras, ofícios e tarefas das gentes do Caurel, aquilo que constitui as suas economias familiares e industriais: apanham e vendem castanhas, mungem vacas, cocem pam, fam umha batida de caça, cortam piçarra na fábrica. É umha autoetnografia consciente, umha olhada a nós mesmos como povo, um saber mirarmo-nos e reconhecermo-nos nestes tempos de submissom política. Por se ficavam dúvidas, Toucedo inclui umha seqüência na que a mestra da escola explica ao seu reduzido alunado a mensage do hino galego e a ideologia de Pondal que, desde o nacionalismo como ferramenta para que “nom nos roubem a identidade”, fai um chamamento à loita do povo contra a escravitude.

Em Trinta lumes as aldeas baleiras e as paisages sem gente enchem-se de mistério. O vento zoa nas árvores, a chuva peta nos telhados de piçarra e a neve, como n’Os mortos de James Joyce, “cai levemente sobre todos os vivos e os mortos”. Nas casas abandonadas os mortos convivem cos vivos. A fronteira entre este mundo e o além é leviana. Alba, a protagonista, acaba cruzando-a. “Às vezes abrem-se portas”, di a narradora ao começo, ao tempo que a paisage do Caurel, nesse mesmo momento, se enche de luz. A morte está onipresente, tanto desde a quotidianeidade (limpeza das lápidas de cemitério, missa de defuntos, conversa sobre a preparaçom dos cadáveres, enterro) como desde o mito e a ficçom (relato de fantasmas, conto de mouras, película de medo, cabaças da noite de defuntos, o ar dos falecidos). E os mortos, as mortas, ficarám eternamente presentes nas velhas fotos que penduram das paredes das casas vazias.

O sobrenatural forma parte da paisage e da sociedade. A casa baleira é o símbolo da convivência (e da conivência) entre vivos e mortos, a ponte entre os dous mundos. Nela, na casa em ruínas, conflui todo, a arquitectura popular e a emigraçom, os mortos e os vivos, a demografia e o abandono do rural, o espaço e o tempo. Como nas casas habitadas só por mulheres em Homes (Toucedo, 2016, 8’), a presença dos ausentes sente-se em cada curruncho, em cada objeto, em cada piçarra caída. Em Homes os ausentes, esses homes nom presentes na image, regressam aos espaços que vivérom através das suas vozes, que som vozes prestadas de milicianos antifranquistas.

Em Trinta lumes as diferentes cenas e seqüências, que partem do realismo e semelham desconexas entre si (família, nena, escola, adolescentes, trabalhadores, missa) vam encaixando pouco a pouco, como num quebra-cabeças, graças a essa ficçom esvaída que Toucedo introduz nas images e que funciona como o cordel que une as doas dum colar.

 
 

Umha nuvem de mosquitos

Alberte Pagán

[relatório exposto no Seminário Pensando o novo cinema galego (Compostela, 15 Setembro 2017), e publicado como “Unha nube de mosquitos” em Para unha historia do cinema en lingua galega [4] Lume na periferia, (Xosé Nogueira [ed.], Galaxia, 2021)]

 
 

Herois do tempo

Alberte Pagán

[folha de sala para a projecçom de Bs. As. no CGAI (22 Fevereiro 2020)]

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