Alberte Pagán

APONTAMENTOS SOBRE CINEMA GALEGO

APONTAMENTOS SOBRE

CINEMA GALEGO

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María Ruido: Pensar a vida fora do capitalismo

Alberte Pagán

[publicado: 22-11-20]

Nom abunda o cinema ensaístico no panorama cinematográfico galego. Podemos pensar no Ramiro Ledo de VidaExtra (2013), na que se atualiza a estética da resistência de Peter Weiss para adaptá-la à folga geral de setembro de 2010 vivida e pensada desde Barcelona (a política do cotidiano); ou no d’O proceso de Artaud (2010), na que narra a expulsom de Antonin Artaud do grupo surrealista através das images da Joana de Arco de Dreyer (película na que Artaud interpreta o compassivo monge Massieu), num frutífero jogo de referências cruzadas.

Mas essa falta de ensaios cinematográficos na Galiza bem queda compensada pola obra de María Ruido, menos cinematográfica mas mais rigorosa e intelectual que a de Ledo. Se o cinema de Ledo tem vocaçom militante e fala desde a rua, o de Ruido fai-no desde a intelectualidade e a classe acadêmica: o seu é um cinema político-filosófico, de debate de ideas, e raivosamente anticapitalista.

Rosebud e a memória

María Ruido entrevista a Ramiro Ledo na segunda parte (Convocando a los fantasmas) do seu grande fresco sobre a memória histórica que é Plan Rosebud (2008), película “sobre a produçom da história e a história da produçom”, “conto” sobre lembranças e esquecimentos, interrogaçom sobre os olvidados lugares da memória, ensaio sobre “documentos que devenhem monumentos”. Ledo é entrevistado como autor de CCCV (2005), película na que recopila as filmaçons militantes de Carlos Varela que hoje som já parte da memória política coletiva (Jove, As Encrobas, Baldaio, tratoradas contra a cota empresarial em Lugo). Mas Ledo nom está só. Por Plan Rosebud desfila umha parte importante da militáncia política galega das últimas décadas: feministas como Rosa Bassave, Nanina Santos, María Xosé Queizán ou Tareixa Navaza; ativistas anti-sida como Nacho Iglesias; historiadores do anarquismo na Galiza como Eliseo Fernández; professores universitários (Castro de Paz), gente de cinema (Pepe Coira), ex-alcaldes (Manuel Soto), músicos e poetas (Antón Reixa, Julián Hernández). Plan Rosebud, nesse senso, é a mais galega das películas de Ruido.

Ambas partes de Plan Rosebud começam com a caída ao chao do globo de neve de Charles Foster Kane em Cidadao Kane (1941). Ruido, como os jornalistas da película de Welles, tenta no seu díptico chegar à verdade (o significado de “rosebud”, a derradeira palavra pronunciada por Kane, num caso; os feitos históricos, sempre tam fugidios, no outro) desde múltiplos pontos de vista que às vezes se contradizem entre si. Nom serám essas as únicas images reapropriadas pola cineasta: veremos cenas do NO-DO; um vídeo-jogo sobre a guerra civil; o Nautilus de 20.000 léguas submarinas (Richard Fleischer, 1954), que expande o significado da escultura da Ilha de Sam Simom dedicada à novela de Jules Verne e inaugurada por Fraga; cenas de Esa pareja feliz (Bardem e Berlanga, 1951), noticiários televisivos, velhas fotos, Después de… (Cecilia Bartolomé, 1980), a folga de Laforsa registrada em O todos o ninguno (Colectivo de cine de clase, 1976). E fotos, cartas e diarios; e textos de Kafka e de Godard.

A primeira parte, La escena del crimen, começa o seu percorrido com a retirada da estátua de Franco da Praça de Espanha de Ferrol; continua na tumba de Walter Benjamin em Port Bou (com o epitáfio “Non hai nengum documento de cultura que nom o seja tamém de barbárie”); no cemitério de Sam Francisco de Ourense, com a sua fossa comum e a sua polêmica rehabilitaçom; na prisom provincial de Celanova; e na colônia penal da ilha de Sam Simom. Ruido enriquece este percorrido polos lugares da memória hispana com visitas a lugares de similar significaçom na Europa da pós-guerra: ao Eden Camp, campo de prisioneiros italianos e alemáns em Yorkshire, ao norte de Inglaterra, convertido em parque temático, trivializado e mercantilizado, com o seu discurso marginal turistificado e por tanto sem poder cáustico; e a Normandia, com os seus espetáculos audiovisuais do desembarco, onde mesmo se pendura um manequim da igreja de Saint-Mère como atraçom turística em recordo do paraquedista aliado ali caído. A mesma banalizaçom se observa na Ilha de Sam Simom.

Plan Rosebud: La escena del crimen critica as decorativas políticas da memória histórica como continuaçom do pacto da Transiçom, que permite que as ruas de Ourense conservem os nomes franquistas e que a Fundaçom Francisco Franco (que reivindica o caráter social do franquismo: vivendas sociais, seguridade social, “estado do bem-estar”) seja subvencionada polo Estado; questiona a utilidade social e a independência do cinema de vanguarda tardo-franquista, que utiliza as plataformas produtivas do franquismo; e denúncia a colonizaçom do espaço privado por parte do estado. Ruido reivindica o corpo da mulher como especialmente humilhado (toda opressom se acentua na mulher): doutrinamento tradicionalista na secçom feminina do franquismo. O corpo é suporte de experiência e memória: quando os homes som executados as mulheres sobrevivem como depositárias da memória.

Contra o final desta primeira parte Ruido insere umha longa seqüência com homenages e exaltaçons franquistas no Valle de los Caídos. Quiçá para nom deixar-nos um mau sabor de boca a cámara regressa a Ferrol, no que continua a retirada da estátua do ditador entre aplausos e brindes do público.

Convocando a los fantasmas, a segunda parte do Plan Rosebud (“images, lugares e políticas da memória”) leva-nos às minas de volfrámio de Casaio (Ourense), admninistradas pola Alemanha nazi e trabalhadas por presos políticos; ao encoro de Belesar (o capital, Barrié de la Maza, aliado do fascismo; Astano e Fenosa diretamente vinculadas à extraçom do volfrámio); à reconversom industrial e às loitas sindicais nos estaleiros de Bazán (e os mortos do 10 de março de 1972); às vivendas sociais do bairro de Caranza no Ferrol; aos fuzilamentos do Castelo de Sam Filipe; à estátua de Millán-Astray numha praça da Corunha; à repressom nos bairros obreiros de Vigo; e às eleiçons gerais de 1977. Entretanto, o Jefe do Estado e o Presidente do Governo visitam Maria Pita para assinar a Lei de Amnistia, Joám Paulo II aterra em Compostela e os restos de Castelao regressam à Galiza entre fortes protestas.

Mas Convocando a los fantasmas tamém lhe dedica tempo à funçom da image (da música, da arte) na fabricaçom da memória. Já na primeira parte Pepe Coira alertava sobre a parcialidade das images: quem decide que conservar nos arquivos públicos?, quem pode ter aceso aos mesmo?, quem se permite pagar os excessivos custos pola utilizaçom de citas visuais? Nestas circunstáncias (os arquivos em maos do poder) nom resulta doado rebater as histórias oficiais. E o cinema (vemos umha velha sala em ruinas, um projetor oxidado: decadência do aparato depositário da memória visual) ajuda a sonhar e a subsistir, mas tamém tem umha responsabilidade social e histórica (Ruido converte o sonho em reflexom e pensamento). Insinua-se a conivência do Novo Cinema espanhol com o franquismo, denuncia-se o boicot da gauche divine a umha película militante como O todos o ninguno, o sexismo inato da progressia e a nostálgica visom da história de séries como Cuéntame ou Libro de familia.

Ruida critica o apoio dos EUA à ditadura franquista, os grandes espetáculos como o Jacobeo 99 ou o Concerto do Fim do Milénio, umha TVG convertida em alto-falante do Partido Popular (herdeiro direto do franquismo) e a cultura como espetáculo e negócio (mastodôntica e inacabável Cidade da Cultura em Compostela). Ante a despolitizaçom da juventude e das artes, que convertem a rebeldia em moda e mercado, o cinema e a arte em geral há de saber enfrentar-se ao poder e ao capital, bem desde coletivos de cinema militante como os británicos Cinema Action ou o Berwick Street Collective, bem desde o apoio político (como o de Billy Bragg e Paul Weller ao partido laborista británico num intento de politizar as novas geraçons), bem desde a increpaçom direta (Antón Reixa cantando sobre o sector naval). Concertos em favor de Astano, Rock Against Racism, e a autoproduçom cultural à marge da indústria som alguns dos antídotos contra o seqüestro dos produtos culturais e a sua mercantilizaçom para a classe média, que seqüestra igualmente a memória coletiva.

Plan Rosebud remata com o derrubo do imenso monólito dedicado a Franco que coroava as Ilhas Cíes. Mas fica demonstrado que é mais doado derrubar um monumento (que com todo só cai ao segundo intento) que desfazer-se da longa sombra do franquismo sobre a nossa sociedade.

Autobiografia de María Ruido

Vendo as suas películas acabamos conhecendo muito da vida persoal de María Ruido. A autora adentra-se no político partindo do persoal, como cidadá mas tamém como persoa e especialmente como mulher. Ruido define a breve peça Le paradis (2010) como “autorretrato”. Contra o que poda semelhar Le paradis nom tem images próprias e nem sequer escoitamos a voz da autora, tam presente no resto da sua filmografia. Está construída com fragmentos visuais de Nathalie Granger (1972, Marguerite Duras) e sonoros de En rachâchant (1982, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet), película esta última baseada no texto de Duras “Ah! Ernesto” (1971). Sobre as images de Nathalie Granger escoitamos a voz do Ernesto straubiano: “Nom quero voltar à escola porque nela só me ensinam cousas que nom sei”. A nena Nathalie joga com um gato que tenta levar num carro de bebé: aprendizage dos labores maternais (sublimados por Ruido através da ralentizaçom da image) que finalmente a criança rejeita guindando o carro contra umha pedra. Escoitamos a voz da mai (Lucia Bosè): “Tanta violência numha nena tam cativa!” E assi remata este autorretrato de menos de quatro minutos.

“Tanta violência numha cativa!”. Reciclage de images em Le paradis.

Som significativos os textos escolhidos por Ruido: por umha banda a ambígua recusaçom da escola por parte do rebelde Ernesto, que se nega a entrar no jogo da transmissom de valores dumha geraçom à seguinte; e por outra a violência de Nathalie contra um rol (umha certa maternidade, umha certa feminizaçom) imposto por família e sociedade. É doado entender a querência de Ruido por estas duas crianças indómitas: ela rebela-se de igual jeito contra as histórias oficiais, as memórias tuteladas e as imposiçons patriarcais. Todas as suas películas partem deste inconformismo primordial: rejeitamento do papel de gênero ao que a adscrevem e resistência à autoridade.

Um claro exemplo do salto do persoal ao político (o privado é público) é Estado de malestar (2019), “ensaio sobre o sofrimento psíquico em tempos do realismo capitalista”. Umha crise emocional persoal (assi o explica a autora ao começo da película) provocou esta indagaçom sobre a fragilidade humana, a consciência da nossa finitude e a loucura. Os limites entre cordura e tolémia som conjunturais e históricos; e as causas da loucura, principalmente da loucura feminina (“histerismo” vem do grego “hystera”: “útero”), e do mal-estar temos que buscá-las nas situaçons econômicas e políticas provocadas polo capitalismo. De igual jeito a cura de muitas enfermidades mentais tem que passar por um cámbio de formato político. Esta visibilizaçom da saúde mental, esta socializaçom do privado, pom sobre a mesa as causas políticas das nossas mais íntimas doenças, contradizendo a um dos entrevistados que afirma que “Todo sofrimento é incomunicável” (se é incomunicável permanece na esfera do privado e portanto alheo às causas políticas do mesmo). A indústria farmacêutica entra a capitalizar esta “privatizaçom do stress” produzindo ópio para que a gente trabalhadora, enferma polas condiçons laborais, poda esquecer a dor (que no caso das mulheres tam a miúdo se acusa de ser imaginário) e assi seguir a ser produtiva. A ciência, longe de ser neutra, é classista, sexista e racista. E o capital mesmo estabelece os limites temporais do luto pola morte dum achegado: a partir de tantos dias deixa de ser dó para converter-se em enfermidade, o que implica umha volta ao trabalho, à produtividade, prévia anestesia opiácea (anti-depressivos que atacam os síntomas e nom as suas causas, é dizer as relaçons laborais). O que realmente se está a patologizar é a improdutividade.

Materialismo do vídeo digital: erros numéricos em Estado de malestar.

Partindo de Mark Fisher e o seu Realismo capitalista (2016), Estado de malestar trata, segundo a autora, de “como o capitalismo neoliberal afeta a nossa vida”, repolitizando a saúde mental (a fragilidade humana “nom é um fracasso persoal” senom que tem umhas concretas e quantificáveis causas políticas). Ruido entrevista a membros do coletivo Orgullo Loco e filma os seus manifestos; fala com as InsPiradas de Madrid; grava umhas crianças lendo textos políticos de Fisher, de Franco Berardi “Bifo” e de Santiago López Petit; e interroga a filósofos, psiquiatras e usuárias do sistema de saúde mental. Formalmente divide a pantalha em até nove janelas; introduz planos abstratos de luzes desfocadas (acompanhadas de música eletrónica); deixa que erros numéricos pixelizem a image; negativiza planos em branco e negro; e reutiliza images pré-existentes. A voz de Ruido reconhece que nom quer cair no voyeurismo e nom sabe que images utilizar para falar deste tema. Acabará incorporando planos de películas domésticas dos anos 1950 compradas em Marrocos, que formavam parte do cerne de L’oeil imperative; images de fábricas e do trabalho; e fragmentos de Béla Tarr, Godard e Raúl Ruiz. Todo para fazer um diagnóstico fiável e abrir caminhos de resistência e combate contra este sistema capitalista que tanta dor provoca.

A família, instituiçom bárbara

A pequena Nathalie Granger (Les paradis) rejeita os jogos de maternidade. Ruido expande esta idea em Mater amatísima (2017), subtitulada “Imaginários e discursos sobre a maternidade em tempos de cámbio”, na que retoma a seqüência citada da película de Duras. Mater amatísima projeta luz sobre a pertinência da família, essa “instituiçom bárbara”, nos tempos atuais. E fai-no através da figura de Saturno devorando os seus filhos; da maternidade trágica da Mai morta (1910) de Egon Schiele; e de Riddles of the Sphinx (Laura Mulvey e Peter Wollen, 1977), umha de cujas panorámicas circulares recolhe a domesticidade do quarto (casa de bonecas, roupa infantil), passando por umha reproduçom de Mai e filho ou O espelho (1905) de Mary Cassatt, antes de rematar com a dissoluçom da parelha (o home despede-se na porta) e portanto da família patriarcal: mai e filha expulsam o home do fogar. A família como imposiçom e lugar de conflito tamém vem ilustrada por planos de Imitaçom da vida (Douglas Sirk, 1959), na que umha filha de pel clara renega da sua mai preta; e pola história de Medea contada por Pasolini (1969) e Lars von Trier (1988): a mai assassina os filhos como vingança contra o pai. E na música duas visons da maternidade contrapostas: a sagrada (e virge, sem desejo) mai de Jesus no Stabat Mater (1736) de Pergolesi, e a meiga rebelde da Medea (1797) de Cherubini.

Todas estas famílias autodestruídas da pintura e do cinema encarnam-se na figura de Rosario Porto, quem em 2013, em cumplicidade com o seu marido, matou a sua filha Asunta de doze anos. O caso Asunta ocupa grande parte da película (images do juízo, cámaras de vigiláncia utilizadas na investigaçom, noticiários da TVG, declaraçons do advogado de Porto) e serve-lhe a Ruido para constatar o forte rejeitamento social da falta de instintos maternais. Hai quem acusa a mai de deixar-se influir polas convençons e os medos sociais (“Mai, por que permitiste que nacesse contra o teu desejo?”, escoitamos dizer sobre umha pantalha negra) e estám as mais oprimidas que amam (ou nom) os seus filhos e filhas mas que ódiam ser mais. E fala Orna Donath sobre as mais que o som ao seu pesar, que nom escolhem ser mais.

A película de Mulvey era “umha leitura marxista e materialista da maternidade”. Ruido sabe encaixar com elegáncia a família e a maternidade na sua visom política da sociedade e na sua crítica do capitalismo. A fim de contas os filhos nom deixam de ser um produto mercantil (mao de obra para a produçom capitalista) e de aí a santificaçom da maternidade e mesmo das famílias numerosas (premiadas polo estado). A cineasta critica o control social do corpo e do desejo, que deveria ficar à marge da maternidade. Se o corpo é o instrumento de control social, atitudes como a de Medea tenhem umha forte carga política. Mas o patriarcado tamém afeta os mitos: se todo o sangue e morte que o dubitativo Hamlet provoca o converte em símbolo de toda a humanidade, di Ruido, a tragédia de Medea nom passa de ser um caso feminino concreto. Mas este caso, o assassinato dos filhos, é umha acçom política dirigida contra o home (o poder patriarcal). Ruido remata Mater amatísima com um primeiro plano do atônito Jasom de von Trier contemplando os cadáveres dos seus filhos. Medea, a feiticeira que escapa do control social, é quem de golpear mortalmente o mundo racional e “pequeno-burguês” (em palavras de Pasolini) de Jasom. A família nom se estabelece em base a relaçons biológicas senom políticas.

Filmaçons familiares em S8mm ao começo de Mater amatísima.

A memória dos esquecimentos

Ao começo de La memoria interior (2002) escoitamos “Nur Stille! Stille! Stille!” (de A flauta mágica de Mozart) mentres sobre a pantalha negra corre o diálogo entre Mefistófeles e Fausto (do Fausto de Goethe) no que o primeiro afirma que “O tempo é breve e a arte é longa”. La memoria interior é umha película sobre “a construçom da memória e a produçom da história” na que o persoal e familiar (a emigraçom a Hamburgo da mai e o pai de María Ruido) conforma umha espécie de intrahistória do processo migratório que, entre 1959 e 1973, levou a dous milhons de espanhois a trabalhar como mao de obra nom qualificada em França, Alemanha ou Suíça. Ruido analisa as circunstáncias socioeconômicas da emigraçom desde umha perspectiva fortemente persoal. Em Máter amatísima incorporava images familiares (em S8mm) da sua infáncia. Agora interroga e se enfrenta diretamente aos seus pais, lembrando a nena que ela era quando a deixárom na Galiza para empreenderem a viage além dos Pirineus. A provisoriedade da emigraçom nom permite deslocamentos familiares; os trabalhadores, as trabalhadoras, subordinam o bem-estar persoal e familiar ao trabalho e o salário, sem se decatarem de que o trabalho nom os tem feito livres, estrangeiros aqui e acolá, proletariado que aspira a deixar de sê-lo e a ascender na escala social: a classe é um lugar que se quer abandonar, é um estado provisório e como tal (como a emigraçom) nom paga a pena luitar por el, melhorá-lo, fazê-lo habitável. Eterna derrota (em ambas acepçons) do emigrante. Venda da alma ao dianho por um tempo familiar (ver crecer as crianças) sem retorno.

A Ruido da atualidade viaja à Alemanha dos pais para conhecer as condiçons laborais e vitais da carvoaria na que trabalharam; mas ao tempo a viage é umha “experiência de memória”. Ruido tem “o dever da memória, de contar a nossa história que é tamém a História”. E com esse fim reutiliza images do NO-DO, do Outubro (1927) de Eisenstein e fotos de mulheres emigrantes.

Numha aldea galega de economia agrícola a cineasta entrevista, em galego, a pai e mai, confessando que nom entendia porquê quando era cativa lhe escreviam em castelhano. Ruido, que toma o apelido materno como identidade, feminiza a emigraçom e entende, ou polo menos nom cai no reproche, as circunstáncias que priorizam o trabalho sobre o amor materno. O corpo (feminino) é um território de “memória e ausência”. Esta “memória interior” é o contraponto familiar e persoal da grande memória que será o Plan Rosebud.

A cineasta ante a sua mai (mediada polo vídeo) em La memoria interior.

O neocolonialismo e a olhada exótica

Em الحلم انتهى (Le rêve est fini, 2014) Maria Ruido pousa a sua olhada crítica na Tunísia. A autora, como em tantas das suas películas, começa com um plano negro sobre o que escoitamos a voz de Mireille Fanon (o discurso é mais importante que a image) sobre o neocolonialismo: continuaçom da opressom por outros médios. Ruido esboça o seu discurso a partir do Frantz Fanon d’Os condenados da terra (1961), instigador dumha Unidade Africana ainda por construir; do Engels d’A orige da família, da propriedade privada e do Estado (1884), que salienta a subjugaçom da mulher; e d’O home atlántico (1981), no que Marguerite Duras (nacida nas colonias da Indochina) lamenta o fim dumha relaçom amorosa.

Ruido arranja este tratado de amor, gênero e colonialismo (Estado, cidadania e corpo) através de filmaçons próprias da Tunísia pós-revolucionária e de images da anticolonial Terre tunisienne (Jean-Jacques Sirkis, 1951) e de Un printemps 1956 (Frédéric Mitterand, 2006), sobre a independência da Tunísia. Os formatos da image cámbiam continuamente: branco e negro e cor; voz sem image e images sem som; velhos celuloides comerciais e S8mm, entrevistas e noticiários televisivos. Os aspetos mais autobiográficos (do persoal ao político) recolhe-os um diálogo escrito em azul sobre pantalha preta entre M (Maria Ruido) e K (Khairi Jemli). Intuímos umha história de amor, que leva à autora a terras norte-africanas, e pressentimos umha ruptura que acabará com Ruido no labirinto de Estado de malestar. A família estabelece a primeira divisom do trabalho, afirma M; ao que contesta K, enlaçando Le rêve est fini com Mater amatísima: A família contém e reproduz todas as servidumes. K fala da invisibilidade do “outro”, do emigrante, a um tempo sobrevisível e invisível; M contesta sobre a invisibilidade de mulher, ao mesmo tempo sobreobservada. Todas as opressons passam pola mulher; o gênero (o persoal) é o campo de batalha do político. Se o emigrante é o corpo produtivo, a mulher é o corpo reprodutivo.

A emigraçom é conseqüência da explotaçom neocolonial; a viage persoal tem umha motivaçom econômico-política (mas tamém familiar: como em La memoria interior, abandona-se a família para poder mantê-la economicamente). Vemos os estaleiros onde se constroem as barcas que levam a mao de obra além do estreito e vemos embarcaçons ruinosas; e ouvimos vozes constatando o preço da emigraçom (4000€). Ruido é consciente de que as images nom som quem de transmitir o discurso. A cámara nom mente, só esquece: é ela a que decide o que vemos, di Ruido filmando-se a si mesma num espelho na praia desde a que partem as embarcaçons cara a Europa. Ruido navega até Lampedusa, emulando a viage de tantos emigrantes tunisianos. Detém-se numha gasolineira. As luzes noturnas, desfocadas, volvem-se manchas abstratas (que Ruido retomará em Estado de Malestar). Umha mao tapa o objetivo no derradeiro plano da película.

A artista ante o espelho: autorretrato ao final de Le rêve est fini.

María Ruido continua a falar-nos desde o Magreb em الحتمية العين (El ojo imperativo, 2015). Rodada entre Marrocos, Tunísia, Ceuta e Barcelona, El ojo imperativo centra-se na olhada colonial(ista), nas images (do cinema) que constroem a história. Com as suas images o colono fai história mas nom do país de cujas riquezas se apropria senom da metrópole: o Magreb como província. Vemos a Ruido comprando velhas películas domésticas no Zoco Chico tangerino, entrando na cinemateca no Cinema Rif, levando as películas à cabina de projeçom. E na pantalha projetam-se velhas estampas coloniais orientalizantes nas que se admiram as “belezas rifenhas”, os “povoados nativos” e os “regulares melilhenses”, protetores que “se sacrificam” polo bem-estar e progresso da populaçom autóctone. Espanha deu o seu sangue e a sua vida por Marrocos, di o noticiário colonial. E mesmo a independência marroquina é acadada “de maos de Espanha”.

A metrópole bem está presente no território conquistado: Café Colón, Gran Teatro Cervantes. O colonizado aspira a integrar-se na naçom colonizadora, de igual jeito que em La memoria interior a classe trabalhadora era um lugar que se pretendia abandonar. O persoal e o político, o familiar e o imperial, a classe e o gênero: o senhor Bensai de Casablanca, cujas películas caseiras rodadas entre 1957-1963 a cineasta topou no mercado, aparece na pantalha como benévolo patriarca: exerce poder sobre a sua família como o colono o exerce sobre o colonizado. O patriarcado é um imperialismo doméstico: colonizar as mentes.

Desde a cabina de projeçom vemos as images conservadas nas películas encontradas: militares, o rei, bailes rifenhos, a praça Jemaa el Fna de Marrakexe. Alguns deste planos reaparecerám em Estado de Malestar. Ruido sementa a dúvida de se as suas images, inconscientemente, nom serám igualmente orientalistas. A dúvida sustém-se quando nos enfrentamos a um longo plano dum home (existe umha relaçom persoal entre el e a cineasta?) rezando num parque, num exemplo de olhada fascinada polo “exótico”.

O neocolonialismo neoliberal afeta diretamente a vida das persoas. Como já é habitual Ruido centra-se no proletariado e em concreto nas mulheres trabalhadoras: neste caso a sua cámara adentra-se numha empresa maquiladora na que as trabalhadoras lavam, rompem e desgastam os pantalons vaqueiros para ajustá-los à demanda europea. Nas oficinas pendura um retrato do daquela príncipe Filipe de Espanha; e os caixons estám rotulados com o nome das marcas mais conhecidas: Mango, Stradivarius… Deslocamento comercial, abaratamento dos custos de produçom, e a mulher no centro da explotaçom capitalista. Orientalismo e imperialismo vam da mao na imposiçom comercial.

Desenvolvimento ≠ progresso

Na crítica de Ruido ao sistema patriarcal capitalista tamém hai lugar para outros conflitos e luitas anticapitalistas. Tiempo real (2003) analisa a precariedade laboral (de mulheres, imigrantes e ciganas), a insalubridade do trabalho (feminino), o objetivo capitalista da rendibilidade a toda costa (“liberdade, igualdade, rendibilidade”, podemos ler na pantalha dum computador), e o esforço heroico de quem se resistem a ir com a corrente, se mantenhem firmes, nom seguem as pautas do mercado capitalista. O trabalho (assalariado) forma parte da identidade masculina enquanto o trabalho feminino se invisibiliza e nom cotiza: patriarcado e colonialismo confluem no quadro Olympia de Manet, no que a mulher é representada no seu duplo papel de objeto sexual (a mulher branca deitada) e de trabalhadora doméstica (a escrava preta). Ruido é consciente da “qualidade construtora da image” e de que “as formas dramáticas tradicionais nom podem funcionar para uns contidos novos”. A produçom das images está baixo suspeita; as fábricas modernas, ao igual que as artistas, funcionam através de “projetos” que permitem flexibilidade na dedicaçom. O que hai que produzir, reconhece a cineasta, é “contra-images” que ajudem na luita coletiva. A cineasta inserta cuidadosamente nas entrevistas com membros de Precárias à Deriva images de estampas, revistas, bandas desenhadas e películas, em concreto Jeanne Dielman (Chantal Akerman, 1975), em cuja seqüência final, que Ruido reutiliza como conclusom de Tiempo Real, a protagonista, ama de casa que obtém ingressos da prostituiçom, num ato de auto-negaçom assassina um cliente com o que tivo um orgasmo nom desejado, nom esperado. “Este é o tempo das assassinas”, di a voz da cineasta.

Ficciones anfibias (2005) continua as investigaçons de Tiempo real. Nela Ruido analisa a precarizaçom, a domesticaçom e a flexibilidade das novas condiçons laborais, que implicam umha perda de privilégios: as mulheres que trabalham para grandes empresas têxteis (Inditex entre elas) ensamblam as prendas como a cineasta empalma os planos: cada costura, cada empalme, tem um significado material(ista). A imigraçom, as chaminés industriais, Mataró e Terrassa (“história de duas cidades”), a construçom do caminho de ferro, a luita obreira e a luita feminista, os talheres clandestinos, images da TV e planos das folgas obreiras de 1969-70 som os retalhos dos que María Ruido se serve na construçom do seu ensaio.

Zona franca (2009) utiliza um dispositivo de dobre pantalha para denunciar, ao estilo dumha reportage televisiva, as condiçons laborais das trabalhadoras da zona franca do porto de Barcelona. Lo que no puede ser visto debe ser mostrado (2010) volve ao tema da memória histórica de Plan Rosebud, recuperando as images, já utilizadas naquela película, do Jefe do Estado e o presidente do Governo Adolfo Suárez na Corunha para assistir ao conselho de ministros no que se aprovou a Lei de Amnistia. Desde a materialidade dumha cabina de projeçom Ruido reutiliza images de “camisas azuis” condecorando a Virge do Rocio, assassinatos de obreiros em Rio Tinto, ficçons de Cecilia Bartolomé e cine militante de Helena Lumbreras, homenages a Carrero Blanco em Pontevedra em 1974 e a maré preta do Prestige, todo para esboçar o retrato dumha falsa transiçom (franquismo demudado em democracia) e dumha amnésia pós-franquista de todos os que apoiaram e se beneficiaram da ditadura. O cinema em ruínas desde o que fala Ruido é umha boa image do estado da nossa história. Entre essas paredes, e ante a colonizaçom do espaço privado por parte do fascismo, a gente podia ainda alimentar os seus desejos persoais.

A materialidade da image em ElectroClass.

Algum plano de Zona franca reaparece em ElectroClass (2011), película na que Ruido analisa a reconversom industrial tomando como caso de estudo Bilbao, cidade cujos bairros industriais se desmantelárom para dar passo a projetos como o museu Guggenheim, que nom está precisamente desenhado para a classe obreira; e na que 5000 trabalhadores som despedidos dum estaleiro rendível que há de pechar por estar demasiado perto do centro urbano. Como já é habitual na cineasta a crítica política vai unida a umha crítica (e umha consciência) dos meios de expressom empregados: por que esse contraplano?, onde se há de colocar a cámara? O cinema como arma contra o poder: se as televisons públicas estám ao serviço do governo temos que buscar “outra televisom”, umha televisom de luita. ElectroClass é a mais godardiana das películas de Ruido. Há lugar para a reivindicaçom do materialismo da image (detém, rebobina e fai avançar rápido a cinta dumha manifestaçom); retomam-se images dos documentários de Ortuoste e Rebollo sobre a cidade (Bilbao como mosaico, Bilbao mientras tanto e Bilbao en la memoria, todas de 1987); citam-se textos de Godard e images de Alphaville (1965); reutilizam-se planos de El perro negro (Péter Forgács, 2005), à sua vez montada a partir de images preexistentes; e sobre o créditos finais escoitamos o comunicado de ETA anunciando o cesse definitivo da sua atividade armada.

Maria Ruido utiliza images de diversas procedências para falar da memória, para exprimir a memória das images; para produzir história enquanto fai umha história da produçom. A sua obra expom, pensa e fai pensar (repensar). Muitas das suas películas começam com a sua voz sobre a pantalha preta: voz e image (ou ausência de image), muitas vezes recicladas, som as ferramentas que Ruido utiliza para falar de política e da sociedade a partir do persoal e familiar; para mostrar luitas obreiras e feministas e anticapitalistas em todo o Estado espanhol; para viajar ao Bilbao desindustrializado de ElectroClass e à Catalunha de Zona franca; mas tamém para criticar (e o mérito de Ruido é fazer-nos ver que nom se trata de conflitos nem luitas independentes: todo forma parte da mesma opressom) o neocolonialismo (Tánger, Marrocos) e a visom orientalista e capitalista opressora. Sempre desde a consciência da materialidade das images que cria e com as que trabalha. E sempre com um tema transversal: a opressom (seja capitalista, colonial, familiar ou laboral) sempre é mais acusada quando a vítima é mulher.

 


Psicogeografia do cinema galego: política, ruralismo e vanguarda

Alberte Pagán

[publicado em Clara Corbelhe o 26-11-21]
[impresso em Clara Corbelhe: Anuário 01. Textos completos do Caseto (2021-2022), pp. 63-78.]

 


Os corpos e a terra

Alberte Pagán

[publicado em Novas da Galiza em outubro 2023]

Som duas as aceiçons da etiqueta Novo cinema galego (NCG), acunhada na revista Acto de Primavera em 2010. O nome original nasceu com vocaçom profética, propagandística e inclusiva, e anunciava o irrebatível sucesso do cinema galego em festivais internacionais. Era um selo que dava fê de nascimento e que qualquer cineasta podia usar a vontade, sem limites formais nem temporais. Um lustro despois o arquivo Novo Cinema Galego apostou por umha definiçom mais científica e reducionista, segundo a qual o NCG era aquel nom industrial, vanguardista, de vocaçom galega e limitado no tempo à década 2005-2015. A primeira aceiçom olhava cara ao futuro e ajudou a conformar umha filmografia inovadora; a segunda mirava ao passado para analisar com rigor o acontecido. Tudo o que véu despois de 2015 nom seria estritamente NCG, senom consequências do NCG, epígonos, sucessoras, reboques, umha Segunda vaga de vocaçom industrial e profissional que, porém, soubo incorporar a madurez artística do NCG. O corno, de Jaione Camborda, é um bom exemplo deste modelo: umha produçom ambiciosa que nom renuncia a um estilo persoal e pausado e que obtém sem esforço um prémio da categoria da Concha de Ouro no Donostia Zinemaldia. O galardom, que supera a marca de Oliver Laxe em Cannes, é significativo pola sua dimensom social e, em consequência, porque ajuda a normalizar a utilizaçom do galego nos diálogos e a presença dumha mulher na direçom. Camborda, com olhada fresca, progride polo frutífero carreiro do neorruralismo que já tripárom A esmorga (2014) e O que arde (2019), colheitando os mesmos êxitos de crítica e público.

Eloy Domínguez Serén estreava Os corpos (2020) durante a pandemia, e a fisicidade das imagens, a cercania da cámara a rostos e máscaras, os contatos entre os corpos, as massas humanas e o barro sobre a pel, resultavam balsâmicos em pleno confinamento. O corno, com um ritmo mais pausado, comparte todas essas características, mas desde um ponto de vista profundamente feminino. Os corpos, aqui, som os das mulheres que parem, abortam, trabalham, aleitam, bailam e fodem; as peles sujam-se de lama, terra, sangue e leite, tanto no trabalho como no prazer, no parto como na fugida. Camborda, desde um feminismo essencialista que parte, como o de Julia Kristeva, da própria experiência como mai, reivindica a animalidade, mesmo a bestialidade, dos corpos humanos, que nom podem fugir da sua condiçom mamífera. Som corpos perplexos que surgem da terra, que confundem o nascimento com o orgasmo e com o aborto, que sangram e se lixam e deitam leite nuns atos e nos contrários (na lactaçom e na prostituiçom), que partem do persoal (como fai a mesma cineasta) para se adentrarem no político (o autoaborto de Maria, cicatriz mediante, converte-a em ativista), que se prostituem ou se vendem ao mercado por trinta escudos.

A primeira sequência, um longo parto de quase 10 minutos (que, desde a “escritura feminina” preconizada por Hélène Cixous, esquiva sabiamente a “olhada masculina” externa e a imagem apoteótica do nascimento para centrar-se nas sensaçons da parturiente), provê o marco interpretativo: fala-se desde a singularidade do corpo feminino e da ajuda solidária, ao tempo que se reconhece a cumplicidade do home. Esta sororidade, presente ao longo de toda a película, nom renuncia a, bem ao contrário parte de, a condiçom animal mamífera, como se ilustra na penúltima sequência, na que umha manada de vacas (que lembra as cavaladas filmadas por Camborda em Rapa das Bestas [2017]) cruza o rio fronteiriço, sem permissos políticos, protegendo-se mutuamente e cuidando dos frágeis cuxos: o que umha soa nom fai, o grupo consegue. A força destas duas cenas fai-nos esquecer certas debilidades e inconsistências narrativas, que forçam em demasia a suspensom da incredulidade.
 


Narrar é fascista (a propósito de As bestas)

Alberte Pagán

[publicado em Clara Corbelhe o 15-12-23]
 


Longa noite: tempo de chorar

Alberte Pagán

[publicado em Clara Corbelhe o 18-10-24]

 

 
 

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